quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Os novos incendiários



Como se não bastassem as tristes estatísticas de carácter sócio-económico que nos últimos anos têm revelado estar Portugal na cauda da Europa, surgem ainda, como agravante, os números negros da actividade incendiária no nosso país. Números que excluem, claramente, factores casuísticos como estando na base desta calamidade; números que excluem, seguramente, o significado da intervenção deste ou daquele deficiente mental ou deste ou daquele pirómano, como estando na base de tamanha criminalidade. Pelo contrário, o terror a que se assiste, de norte a sul do país, todos os anos nos períodos quentes, mais parece estar relacionado com planos criminosos bem arquitectados, com uma actividade mafiosa que tenta dissimular-se à sombra dos discursos ministeriais em prol de mais protecção, de mais aviões, de mais corta-fogos, de mais viaturas anti-fogo, etc, etc, etc.
Como se não bastasse a apocalíptica destruição que tem ocorrido de forma generalizada pelas matas plantadas nas serranias e vales deste país, assistimos agora a uma nova vaga de destruição direccionada para as matas litorais. Trata-se da desafectação crescente das áreas florestais, de que Ovar se deverá orgulhar obrigatoriamente por ser um dos concelhos líderes nesta matéria.

A pretexto do desenvolvimento do concelho ovarense, que por muito esforço que se faça não se consegue perceber como e onde, os líderes políticos locais deixam que a mata litoral que se estende por todo o concelho vá sendo esventrada. Sportsfórum, Dolce Vita, hipismo, ténis, golfe, enfim, tudo aquilo que não interessa ter a custo da destruição de uma riqueza natural que esses mesmos líderes nunca souberam valorizar.
Creio que qualquer dos nossos vizinhos mais próximos, espanhóis e marroquinos, estão bem mais sensibilizados para a preservação dos seus espaços verdes do que nós. Espanha, porque não só tem uma grande porção do seu território com estatuto de protecção, mas sobretudo porque tem uma política nacional de ambiente articulada com as políticas das comunidades locais; Marrocos, porque sendo um país seco e árido tem naturalmente a preocupação de salvaguardar todos os oásis e jardins que possui.
Nós por cá é que não, pois queremos marcar a diferença.

Todas aquelas infra-estruturas que atrás citei, pensadas para Ovar e que poderiam muito bem ser construídas em terrenos sem qualquer valor natural (valorizando assim esses mesmos terrenos) vão, numa iniciativa de puro empreendedorismo cego (ou de qualquer outra forma de sentimento de... desprezo por Ovar), ser construídas no lugar onde antes se encontravam árvores centenárias, verdadeiros “pulmões” do concelho.
É caso para dizer, viva a diferença!

Vêm estas considerações a propósito de recentemente a comunidade ovarense ter sido informada pelos media locais de que havia sido aprovado por unanimidade em reunião de Câmara o “Ante-Plano do Plano de Pormenor do Centro Hípico Equestre do Furadouro”. Há muito, muito tempo que tal assunto não vinha sendo mencionado nos meios de informação, aparentemente quase parecia esquecido, muito provavelmente porque dada a delicadeza do assunto se entenderia, por bem, não haver vantagem em “fazer muitas ondas” em torno deste projecto, que implica desafectações à Reserva Ecológica Nacional e ao Regime Florestal.
Para quem possa andar mais distraído, ouvir falar deste projecto poderá induzir àquela ingénua sensação de se pensar que finalmente vai ser levada à prática uma iniciativa em prol da população de Ovar, uma iniciativa que poderá permitir, quanto mais não seja, aos mais jovens, aos filhos e netos vareiros poderem usufruir de uma actividade desportiva, habitualmente dispendiosa e por conseguinte muito pouco praticada no nosso país. 
Pois enganem-se os pais e os avós desta terra. Podem mesmo “tirar o cavalinho da chuva”, pois, por detrás da designação deste pomposo projecto está, nada mais, nada menos, do que...ora adivinhem lá?...se não conseguiram adivinhar eu digo...mais um projecto imobiliário para construção de habitações de luxo predominantemente do tipo unifamiliar.
Refira-se que esta ideia já não é nova e já teve até outros projectos percursores que, felizmente nunca saíram do papel.

De facto, um projecto desta natureza, centrado à partida em torno do hipismo, poderia enquadrar-se bem na paisagem de uma mata, caso esta não constitui-se, à presente data, a única forma de travar naturalmente o desgaste do campo dunar litoral e por conseguinte necessitar obrigatoriamente de estrita protecção.

Não está em causa a aceitação de projectos que possam trazer desenvolvimento para o concelho, antes, a forma como se faz a aceitação dos mesmos. O concelho de Ovar tem, por certo, entre as suas diferentes freguesias muitos espaços baldios propícios para a instalação de um projecto desta natureza, sem que o mesmo ponha em causa o equilíbrio natural da zona de implantação. Mais, Ovar tem superfícies, outrora industriais, hoje infelizmente devolutas e que poderiam ser reconvertidas para a concretização deste (ou de qualquer outro futuro!) novo projecto.
 Falemos claro.
 Estamos em Portugal e não em Inglaterra, Nova Zelândia ou Argentina, onde os desportos equestres são múltiplos e tradicionais, fazendo parte da própria herança cultural desses povos. Estamos em Ovar e não no Estoril ou no Algarve, onde o fluxo de turistas ou utentes deste tipo de infra-estruturas pode manter alguma afluência e regularidade proporcionando divisas à região.
  Falemos claro.
        Este projecto equestre assenta em 6 pólos (4 pólos residenciais, o pólo hoteleiro e o pólo dos equipamentos) todos com espaços comerciais, arruamentos e passeios associados. O denominado pólo de equipamentos engloba, aquilo que à partida é o chamariz do projecto (em termos de marketing, entenda-se) - o centro hípico e a área destinada ao ténis.
Contudo, uma análise do projecto permite constatar que entre a versão proposta pelos seus promotores em 2005 e aquela que foi proposta este ano houve, claramente, uma inversão no que respeita ao objectivo principal do mesmo – a promoção das actividades hípicas. De facto, e no que toca a equipamentos desportivos, a nova versão suprime a estrutura destinada à prática do Pólo, bem como, reduz para metade o número de courts de ténis; ou seja, verifica-se uma redução de cerca de 30% na área de parcelas destinada aos equipamentos desportivos.
Pelo contrário, entre as duas versões, a área das parcelas para habitação unifamiliar aumentou em mais de 150%, com o número de fogos a aumentar em cerca de 40%.
Um outro dado curioso do projecto parece revelar, muito bem, as reais expectativas dos seus promotores. Assim, a área do pólo hoteleiro diminuiu, entre as duas propostas, em cerca de 35%, sendo acompanhada de uma diminuição de mais de 15% no número de camas.
Falemos claro.
Não queiram atirar areia para os olhos dos munícipes. Este projecto poderá, a muito curto prazo, ficar reduzido à componente habitacional de luxo numa zona privilegiada de mata; que o mesmo é dizer a uma habitação de grande privacidade e simultâneamente muito próxima do mar, da Ria, da auto-estrada, do Casino, da cidade do Porto, do Europarque, etc, etc. De uma habitação, cujos proprietários quererão rasgar novas vias através da mata para chegarem mais rapidamente a Ovar ou a outro qualquer destino. De proprietários que se assim o desejarem (e apesar de proibitivo) poderão cruzar a mata a seu bel-prazer, longe da vista de todos, em veículos todo-o-terreno, sem respeito pela integridade do ecossistema.
Enfim, sem se vislumbrar que contrapartidas de efectivo desenvolvimento trará para o concelho, este projecto prepara, sem dúvida, a destruição de um secular recurso natural da região.  

Falemos claro.
A classe política de Ovar, seja qual for a sua cor, foi eleita para cuidar do bem público e para promover o desenvolvimento e bem estar dos munícipes locais; esta obrigação não implica, de modo algum, que se tenha que desencadear a delapidação dos recursos naturais e paisagísticos herdados, bem pelo contrário.
Segundo a ordem lógica, e por conseguinte esperada, para a evolução deste processo, ainda nada estará definitivamente decidido quanto à exequibilidade deste projecto, de consequências ambientais muito negativas. Caberá, então, à autarquia ovarense saber gerir esta iniciativa em nome do desenvolvimento sustentável do concelho, nomeadamente, ao disponibilizar outro espaço territorial para a implantação desta obra.

 (Artigo publicado a 02.11.06 e a 09.11.06 no Jornal de Ovar)